O
presente texto tem por objetivo apontar uma das possibilidades de análise do
conto Colheita, Nélida Piñon,
incorrendo nos caminhos abertos pela teoria jungiana da individuação, processo
pelo qual passa todo ser humano em busca de tornar-se um ser único, tornar-se a
si mesmo (JUNG). Assim, a análise procurará acompanhar este complexo movimento
vivenciado pelas personagens, também complexas, criadas por Nélida Piñon, indicando
o vir a ser, o encontro com o Self, à luz dos estudo de Carl Gustav Yung,
psicanalista suíço, precursor da teoria acima citada e autor de grandes
pesquisas em torno dos mistérios que envolvem a mente humana e seus fenômenos
psíquicos (MACHADO; RAMOS, 2005).
Nélida Pinõn, jornalista, romancista, contista e
professora, é carioca de Vila Isabel, Rio de Janeiro. Sua família é originária
da Galiza, radicada no Brasil desde 1920. Dona de uma bela carreira
acadêmico-literária, Nélida Piñon é a primeira mulher, em cem anos de
existência da ABL, a integrar a Diretoria e ocupar a presidência da Casa de
Machado de Assis, no ano de seu I Centenário.
Colheita é mais uma de suas criações em que a figura
feminina toma forma e ganha espaço, superando a subordinação ao trato
masculino, seja sob o viés paterno ou sob o marital. Trata-se de um casal,
habitante de uma aldeia de base agrícola, que vive um intenso amor. Num dado
momento, o companheiro resolve partir, ganhar o mundo, deparando-se com o apelo
desesperado da mulher, seguido por conseqüente resignação. O homem parte
independente do sofrimento à mulher causado. Esta recolhe-se no lar, e da casa
não sai para nada. Após este período passa a assumir atitudes até então
contrárias ao seu modo resignado de agir. Há uma transformação. Quando já não
mais esperava pelo retorno do homem, este aparece e aguarda o devido
acolhimento da mulher. Ela o recebe e quando o homem está pronto para narrar os
seus feitos e descobertas durante a viagem, é ela quem toma a palavra e
disserta brilhantemente sobre o que vivera até então, como se naquela casa não
permanecera por um minuto sequer. É neste espaço, que vai do encontro do casal,
permeado pela partida do homem e seu posterior regresso, que procurar-se-á
desvendar o complexo processo de encontro do eu, aprimoramento do ser em busca
de algo cada vez maior e transcendente.
Ler
a Colheita é se impelir a descobrir o que faz do ser humano como tal, que ações
o impulsiona ao encontro da realização de tornar-se uma pessoa inteira,
indivisível e completa com a saborosa sensação de auto-realização (MACHADO;
RAMOS, 2005).
É
importante ressaltar que para nos conduzir a este complexo sistema, Nélida
Piñon usa de uma linguagem igualmente singular e complexa, filiando-se ao
movimento de renovação da linguagem desencadeado por Guimarães Rosa, já que “...recusa às sintaxes consagradas e facilmente
comunicáveis (...) busca do insólito...”(COELHO, 1993, p.275). Muitos são
os exemplos para ilustrar a citação acima: “Ele
ainda herói bateu (...) até gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não
sente...”(PIÑON, 2001, p.283). Este trecho mostra uma inventiva maneira de
introduzir o discurso do homem ao do narrador.
A
história se inicia descrevendo, ainda que brevemente, a personagem masculina
até o momento em que “quando se fez homem
encontrou a mulher...”(PIÑON, 2001, p.281), ilustrando que o processo de
individuação só se desencadeia ao contato com o outro, demonstrando também a
dependência que pode ocorrer em relação a este outro (VARGAS, 2005):
“Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal para
providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada algum sinal para
providenciar meu fim”( PIÑON, 2001, p.283).
Há,
portanto, um caráter coletivo (JUNG) neste processo de busca do
auto-conhecimento, tanto pelo homem quanto pela mulher, já que “viveram juntos todas as horas disponíveis
até a separação”( PIÑON, 2001, p. 282). Cada um, ao seu modo, sai em busca
do encontro consigo mesmo.
Após o contato inicial, do eu em relação ao outro,
mas que ainda precede a busca propriamente dita, o homem identifica algo
especial na mulher:
“...ela sorriu, era altiva como ele, embora seu
silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo.
Esta reserva mineral o encantava...” (PIÑON, 2001, p.281)
Isto
identifica a primeira etapa do processo de individuação, em que se dá a
conscientização da persona, na qual o ser humano se relaciona com outrem por
meio de máscaras (persona) (VARGAS, 2005). A mulher se mostra submissa, apesar
da sua altivez, e o homem demonstra devoção (“... e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus
objetos” (PIÑON, 2001, p.281) apesar do desejo de desbravar novos mundos.
Ambos, pois, revelam suas personas.
Assim,
o convívio prossegue até que o homem decide partir. Isso desencadeia reação
intempestiva na mulher. Tem-se a segunda etapa do processo de individuação: o
confronto com a sombra, conteúdos inconscientes que já deveriam estar no
consciente (VARGAS, 2005). A mulher chora, mesmo sabendo necessário sorrir: “Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do
rosto exigir naqueles dias beleza esplêndida...” (PIÑON, 2001, p.281); o
homem parte, mesmo necessitando ficar: “Sempre
os de sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial
dependesse dela para reparar certas omissões fatais” (PIÑON, 2001, p.
282.).
Conseqüentemente,
já que a mulher fica, a percepção do processo de individuação fica mais clara a
partir da análise de seu comportamento, mesmo o homem vivenciando movimento
análogo. Assim, “a partir desta data trancou-se
dentro de casa” (PIÑON, 2001, p. 282), isso por que após um período de
grande esforço físico e ou psíquico há um rebaixamento do nível mental, marcado
pela introversão. A introversão pode ter uma vertente negativa, com o domínio
do inconsciente sobre o consciente, ou uma vertente positiva, apontada no
conto, em que se dá a transformação, uma ampliação da consciência caracterizada
pela capacidade de crescer. Esta introversão também revela os sentimentos de
melancolia, tédio e vazio típicos dos momentos iniciais do processo de
individuação (JUNG).
O
conto mostra os indicadores da transformação que a fase de introversão imprimiu
na personagem feminina: muda a cor do vestido para vermelho, altera o penteado
cortando o cabelo, decisão por eliminar o retrato do homem. Além disso, a
capacidade de crescimento e ampliação do consciente angustiam a mulher desvelando
que “se tornava penoso em excesso
conservar-se dentro dos limites da casa...” (PIÑON, 2001, p. 283).
É interessante se
atentar ao incômodo causado pelo retrato do homem, já que a mulher decidiu por
eliminá-lo, o que se deu de forma bastante conflituosa. Pensando–se nas formas
básicas que se pode ter um retrato, vem à mente figuras retangulares e
quadradas, inclusive circulares. Segundo Yung, estruturas quadradas e
circulares simbolizam o Self (si mesmo), o qual submete o ego na individuação
(VARGAS, 2005). Este incômodo pode indicar o despontar do Self, suas primeiras
manifestações.
Outro
aspecto a ser ressaltado é a mudança de atitude da mulher, que de atitudes de
introversão passa a manifestar atitudes de extroversão após este ponto do
conto. Até então o conto marca a atitude introvertida da mulher, resignada ao
fato de ter sido abandonada pelo homem, encarando-o como fato natural, assim, a
energia que movimenta a relação parte do outro em direção ao eu, ou melhor,
parte do homem. Após o período de reclusão na casa, a mulher adota atitudes de
extroversão, nas quais a energia que movimenta a relação passa a partir do eu
(mulher) em direção ao outro (homem) (JUNG). Portanto, ela “pôde descansar após a atitude assumida” (PIÑON, 2001, p. 282).
Aqui
também se vê a importância que Nélida Piñon dá à ação consciente:“O sentimento de ser só é experimentado na
ação consciente ou na profunda consciência do fazer ou sentir” (COELHO,
1993, p. 275).
A
volta do homem a casa indica a terceira etapa do processo de individuação em
que vem à consciência a contraparte, ou seja, o encontro com a anima (homem) ou com o animus (mulher) (VARGAS, 2005).
Quando
o homem se propõe a relatar as façanhas de sua viagem, a mulher toma a palavra
e narra não só o que vivera até aquele momento como também as experiências do
homem. Antes, porém, exerceu seu papel de dona de casa:
“Ela o trouxe pela mão até a cozinha (...) Deixou-o sentado
na cadeira. Fez a comida (...) limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama (...)
tirou o pó da casa, abriu todas as janelas (...) Vamos ao menos nos falar agora
que eu preciso? ele disse. (...) Eu sei, ela foi dizendo depressa, não
consentindo que ele dissertasse...” (PIÑON,
2001, p. 284)
Assumindo a fala,
passando a narrar o vivido pelo homem (encontro com o animus), a mulher narra suas próprias experiências e as
descobertas que fez de si e por si mesma. Encontra o seu Self, o si mesmo,
quarta etapa do processo de individuação. É a assunção do arquétipo da Velha
Sábia (representação do Self na teoria yungiana) (VARGAS, 2005), na qual as mulheres são as matrizes narrativas, as
velhas guardiãs da memória na primitiva tradição dos contos orais.
Isto representa
também a importância da memória na construção da vida e da história (COELHO,
1993). A arte de narrar certamente tem como função inventariar a memória,
segundo Lúcia Helena Viana. O que é bem ilustrado no conto quando “ela
não cessava de se apoderar das palavras” (PIÑON,
2001, p. 286).
O homem demonstra o
encontro com sua contraparte, a anima,
quando, igualmente à mulher, assume atitudes domésticas: “...e para não
esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou
pano molhado nos armários...”(PIÑON, 2001,
p.286), para assim encontrar o seu Self,
redescobrindo-se e assumindo seu verdadeiro eu :
“...recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a
compota (...) Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como
se pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu
universo” (PIÑON, 2001, p. 286-287).
Além da percepção
do outro, a individuação necessita de uma motivação de auto-realização, que
impulsiona o ser humano desde o seu nascimento. A mulher do conto de Nélida
Piñon demonstra isso afirmando que “...você jamais pretendeu a liberdade como eu” (PIÑON, 2001, p.
284-285). Isto segundo Yung, significa a necessidade de despojar-se dos
invólucros falsos da persona. Há uma implicação também com o ‘vir a ser’, já
que no processo de individuação o indivíduo se torna o que está destinado a
ser, cada um traz em sim a semente do que frutificará. Está idéia está presente
desde o início do conto em que o próprio personagem masculino indicava: “A
cada terra a sua verdade de semente...” (PIÑON,
2001, p. 281). A mulher, desde o
princípio, quando foi descrita pelo narrador, mostrava-se altiva, contudo
desempenhou um papel submisso ao encontrar-se com o homem, até conquistar a
liberdade a que sempre fora destinada. O homem, filho da terra, demonstrava
inicialmente forte afinidade com a mesma, porém dela se desprende para outras
conhecer, até retornar ao berço de sua essência.
O título, Colheita,
remete-nos à simbologia que ela representa ao homem enquanto amadurecimento.
Assim, a colheita é o ápice da maturidade (encontro com o Self), antecedida
pelas fases de semeadura (o nascimento) e cultivo (etapas da individuação).
O conto permite
estabelecer relações semelhantes às apontadas por Benjamim, quando compara o
narrador como podendo ser representado pelo agricultor (cuja experiência se dá
no distanciamento temporal) ou pelo marinheiro (cuja experiência se constrói no
seio do distanciamento espacial). É o que o ocorre com o homem (marinheiro) que
sai à procura de novas terras, novas vivências e a mulher (agricultor) que
mesmo permanecendo no lar aufere grande experiência ao longo do tempo, capaz de
lhe conferir exímio poder narrativo.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, W. O Narrador. Considerações sobre a obra
de Nikolai Leskov. Magia e técnica: arte a política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras
escolhidas, v. 1).
COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no
Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano,
1993.
PIÑON, Nélida. A Colheita. O conto brasileiro
contemporâneo. 13ª ed. São Paulo: Cultrix,
2001.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira.
RAMOS, Denise G.; MACHADO, Péricles P. Consciência em
evolução. Revista Viver Mente & Cérebro, São Paulo, nº 2, p.40-49, 2005 (Col. Memórias da Psicanálise – Edição
Especial).
VARGAS, Nairo S. Tornar-se si mesmo. Revista
Viver Mente & Cérebro, São Paulo, nº 2,
p.74-81, 2005 (Col. Memórias da Psicanálise – Edição Especial)
(Trabalho apresentado por Tatiana Santos em "Narrativa de ficção brasileira", do curso de Pós Graduação em Língua Portuguesa e Literatura, da Universidade Metodista - Agosto, 2005)
Colheita
Nélida
Piñon
Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de
agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela
alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele
se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era
altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que
explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela
unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se
fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades
submersas em lava.
A
aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois
soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do
cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles
se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também
completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes
que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar,
embora se soubesse nelas.
Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de
um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à
mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis,
os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam
em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.
Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza
esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em
terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de
sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse
dela para reparar certas omissões fatais.
Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi
simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os
diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de
casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade.
Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para
quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer
porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.
Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu
nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto
livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela
pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra,
e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o
quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em
sua pele.
A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela
janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria
vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente
intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a
presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às
vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam
eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa
procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o
homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.
Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu
semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes
triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os
cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não
foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros
do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua
rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar
sua morte com o sacrifício da minha vida.
Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente
sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo
poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem.
Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que
o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.
Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então igualava-se
à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma sentença, para
permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à violência. Ele que
se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se
ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum
sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal
para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou ela
olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou a sentir que
unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor mais pungente que
búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das
planícies.
Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa,
pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas
venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que
adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza
de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e
ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu
algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não
sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?
Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor
viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que
escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a
verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele
mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o
povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.
Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la
segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro,
mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se
ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na
transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar
do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais
provado.
Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na
mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a
verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser
como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.
Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou
comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu
sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive
então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O
homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam
ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.
Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro,
ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio.
A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora
descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho.
Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando
tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando
ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela
casa.
Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo
quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem
sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele
não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a
mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.
— O que há na cozinha?
Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois
limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da
casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua
ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais
houvesse abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos
falar ao menos agora que eu preciso?, ele disse.
— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais...
Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a
variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que
apresentem certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de
onde você nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu.
Não deixando que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas
e de pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo
de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a
cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha,
visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em
nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não
tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.
E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia
substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo
falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas
abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido
mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua
vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava
semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários
a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara
um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele
fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se
com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever cartas jamais
enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre
o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra
ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de
descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora
pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas
de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem
deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então em admitir
unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o tempo
suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia
para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em
lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.
— De outro modo, como vingar-me deles?
Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre
a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo
que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se
esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios
recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.
E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua
boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela
projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma
grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia
vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que
além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo
conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que
ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades,
mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com
neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta
para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e
concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.
À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências
iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o
que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos
estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual
poder narrativo.
Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera
conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu
verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela
confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava
sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o
abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a
casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites
ele altivo pensou ter rompido.
Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo
explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça
as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele
foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha
mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes
obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.
Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez advertência.
Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a que pretendia
dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos armários,
fingindo ouvi-Ia ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E, quando a
cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando
frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis ao
mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia dedicar-se para
sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como pudesse
dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu universo.
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