De vez em quando acontece um conto...

E AÍ, NICANOR?

Talvez seria a resposta ideal. Divagava Nicanor em pose de contemplação. Mirava o espelho em todos os ângulos. Ora de frente, ora de lado, esforçando-se por enxergar as costas largas. Talvez era tudo que gostaria de dizer. Ajeitava sem muito jeito um fio rebelde de cabelo que resistira ao laquê, aliás a cabeça toda parecia pesar mais que o habitual. Mas brilhava como nunca. Ele todo brilhava. Mais brilhante, porém, era seu pensamento. Talvez e não se fala mais nisso. O primeiro a dar resposta tão inusitada.
Nicanor sorria cheio de si. Era um gênio. Beijou o espelho. Talvez! Espirrou um pouco de perfume na nuca. Meteu a chave do carro num bolso, no outro guardou as alianças hesitante, inspirou profundamente como que para sorver todo oxigênio do quarto, saiu.
O talvez o livraria da responsabilidade do sim e do remorso do não. O talvez o levaria parcialmente aos braços da amada, mas o safaria do título de genro.
Pés no chão Nicanor! Quem lhe falara ao ouvido? Quem o tirara de seus planos mirabolantes, tecidos ao sabor da imaginação? Desde quando Nicanor dava ouvidos à consciência racional? O fato é que Nicanor, ao estacionar o carro defronte a igreja, lembrou que era Sim ou Não. O padre solicitaria um exorcismo se ouvisse: Nicanor Pereira Gonçalves Militão aceita Maria do Rosário Fonseca Guedes como sua legítima esposa? Talvez! Oh! Exclamariam os convidados; Rosário desmaiaria, pobrezinha!
É Nicanor, sim ou não, eis a questão! Ora cale a boca! Levou ainda uns quarenta minutos para sair do carro. O penteado ousava desmanchar à umidade do suor. Afrouxou a gravata, tirou os sapatos. Ter Rosário dava-lhe de brinde uma sogra cri cri, surda e, o que é pior, feminista. Sogra já traz no nome o ente dissimulado que é (experimente tirar o s para ver o que resta; o s é o disfarce mais esfarrapado que já se viu).
Quando conhecera Rosário, esta logo lhe disse que quando se casasse levaria a mãe. Nem se importou, casar não estava em seus planos, afinal estava saindo com Rosário há poucos dias, apenas para distrair-se.
Cinco anos de distração e quando despertou a atenção estava na porta da igreja, concluindo o sinal da cruz.
Olha o noivo!!! O jeito era empostar-se no altar. Dona Micaela já estava lá. Pronta entrega, em caso afirmativo.
Surge Rosário! Deslumbrante! Ai meu Deus que digo sim! Desaba a tempestade. Dona Micaela é que conduz ao altar a noiva órfã de pai. Ai meu Deu, melhor que eu diga não! Não?! Ficar sem Rosário? E a sogra dantesca?
Que situação, hein Nicanor? Por esta você não esperava! Cala-te antes que cometo besteira!
Como dizer não à Rosário? Mas isto significava dizer sim à Dona Micaela...
Nicanor tremia, gemia. Desmaio, pronto, e não preciso dizer sim nem não. Seria um vexame menor que o talvez. Nicanor perdeu a noção do tempo. Rosário segurava sua mão delicadamente, deitando olhares apaixonados sobre o noivo que à sua frente, face a face, nada via, senão o sorriso sarcástico de Dona Micaela. Chegou o momento Nicanor: sim ou não?
E se fugisse com Rosário nos braço? Bárbaro demais, além do que, suas pernas, de tão trêmulas, não suportariam correr muitos quilômetros sem que os alcançassem.
Indissolúvel Nicanor! Melhor encarar a realidade dos fatos. Ai que consciência mais tagarela! Me deixa pensar, oras! Acho que vou gritar.
Urrou mais forte que pôde.
 - Nicanor, acorda querido! Outro daqueles pesadelos, benzinho? Levante-se que a mamãe já está pronta e te espera na sala.
É Nicanor: o sim, a sogra, o sufoco!

Tatiana Santos

12 de novembro de 2005.
*Ilustração: Iban Barrenetxea

Esperança

(Ilustração de Mijn Schatje)
           Estavam todos ao redor da mesa, acompanhando o olhar ansioso e opaco de Esperança. RÁ TIM BUM! Era o eco da sua infância, há muito sepultada, jamais esquecida.
Veja Esperança, que bela boneca sua madrinha Joaquina mandou vir de Portugal. Remexendo os registros da memória, fragmentos de alegria oprimiam sua respiração. Vamos tia Esperança, faça um pedido. Nem deu ouvidos à filha da sobrinha caçula. Eram seus dez anos que comemorava. Dez anos e uma bela boneca portuguesa. Que foi feito dela?
Hoje será apresentada à sociedade Esperança, use esta tiara, é tradição da família, além disso combinará com seu vestido. Quinze anos. Quanto são quinze anos? Tome seu remédio vovó. Nem deu ouvidos à bisneta mais velha. Dava ouvidos à mente...
Esperança você nem acredita no que vi lá no portão! Papai comprou-lhe um automóvel, vermelho, lindo! Será que quando eu fizer vinte anos também ganharei um? Sorriu levemente e sorveu o perfume de estofados novos, como se o carro estivesse ali na sala de estar. Dona Esperança, não deixe o pedido para amanhã, hein! Nem deu ouvidos ao seu fisioterapeuta. Queria entrar no carro, dar partida e sair velozmente em busca da juventude. Era o seu pedido: juventude!
Parabéns duplo Esperança, pelo aniversário e pelo nascimento de seu quinto filho! Melhor presente não há, não é mesmo? Uma lágrima apenas, a hidratar a pele ressequida ao esvair-se pela face. Olhou para Inácio e outra lágrima brotou. Ora mamãe não chore, eu ajudo a cortar o bolo. Nem deu ouvidos a Inácio. Queria olhá-lo e recordar quando o recebera nos braços há sessenta anos!
E para a Esperança nada! Tudo! Onde já se viu, quarenta anos nas costas e me fazem soprar velinhas! Deu uma grande gargalhada. Será que a vovó tá ficando caduca? Ei vovó sopre as velinhas antes de cortar o bolo. Nem deu ouvidos ao neto caçula. Queria rir, rir muito alto. Mas se conteve, jamais entenderiam o deleite das reminiscências vividas naquele instante.
Tem certeza Esperança que não fará nem um bolinho? Afinal não é sempre que se comemora meio século. Não esboçara reação. E a partir de então deixara de lembrar. Como foram os sessenta, os setenta, os oitenta? Dona Esperança, já que não decide de quem será o primeiro pedaço, como eu, seu genro predileto. Nem deu ouvidos ao genro. Queria lembrar, lutava contra o mal do esquecimento. Queria lembrar. Mas tudo era breu, era vácuo.
Não perdeu a esperança. Não quis soprar a vela para não perder o fio de luz que ainda restava ali. Não quis cortar o bolo para que o cheiro não se dissipasse com o vento, com o tempo.... Vamos vovó já é tarde e a senhora deve descansar, deixe o resto conosco.
Deixou-se levar sem resistência. As rodas da cadeira deslizavam pelo assoalho, cuja música embalava os sonhos de Esperança. Sonhos de recuperar a memória recente esmaecida. Não vivera após os cinqüenta?
Vivera e estava ali para contar suas glórias e inglórias e para cantar aos seus descendentes que naquele dia completara noventa e nove anos.


Tatiana Santos

03 de novembro de 2005




(Ilustração: Shiori Matsumoto)
ESPERA
Pousara o copo vazio na mesa
Da TV vazava a melodiosa voz do apresentador de um telejornal.
Da janela sorvia-se o perfume de dama-da-noite.
Os olhos fixos no relógio brilhavam, ainda que de anseio.
Pousara o copo vazio na mesa.
Da TV ressoava o choro lamentoso da mocinha que perdera seu grande amor.
Da janela, a balbúrdia dos que voltavam.
Os olhos fixos no relógio tremelicavam ao sobe e desce das pestanas.
Pousara o copo vazio na mesa.
Da TV emergia risos e gargalhadas falsas daquele velho programa de humor.
Da janela, agora cerrada, um miado, um latido.
Os olhos fixos no relógio reagiam à dança ritmada dos ponteiros.
Pousara o copo vazio na mesa.
Da TV, um chiado.
Da janela, o silêncio.
Os olhos fixos no relógio desviaram-se para a maçaneta. Alguém que entra, outro que sai.
Enchera a garrafa de café.

Tatiana Santos

10 de setembro de 2005.


SEPARAÇÃO

Batera a porta sem ao menos esperar reação.
Correra. Correra tanto a ponto de ruborizar a face, contrastando com a palidez que ganhara ao abandonar a casa. A casa que havia sido cenário do romance folhetinesco que vivera até ali.
Num arrebatamento parou. Caminhou alguns passos. Parou. Tombou. Cravou os joelhos na relva úmida.
Sob a fronde de uma oliveira, deixou que os olhos repousassem para que da mente febril levitasse o insólito desejo de ali não estar.
Como pudera sequer colher os frutos plantados no coração por aquele profano amor?
Não. Não fora ela o algoz de sua alma, condenada ao sepulcro por acreditar naquele amor.
Não. Não fora ela que atirara a flecha e recebera a fausta sentença de banhar o corpo com as lágrimas que ora derrama, dos olhos cerrados, sob a fronde de uma oliveira.
(Ilustração de Kukula)


Tatiana Santos

Setembro/2005.


ETÉREAS



Chovia. Vera chegou atrasada naquela manhã de sábado. Acho que fui precipitada, nunca uma noite se fez tão longa. Rodrigo ainda não caiu em si.

(© Bec Winnel)
Dependurou o guarda-chuva. Os olhos miúdos e vermelhos mal divisaram o aceno ansioso de Julieta. Hoje a Vera não me escapa, parece que esta tratante está adivinhando, fugiu de mim a semana toda, se não fosse por mim estava encalhadinha como eu, ah! Rodrigo, quase...

-          Vera, só um minutinho, tenho um recado urgente do Dr. ... do Dr. Sílvio. É só o tempo de terminar esta ficha.

-          Nossa, virou secretária particular? Vê se não demora Ju, que estou com trinta minutos de atraso. Aquele laboratório não funciona sem mim.

A Vera se acha! Julieta se levantou depressa logo que despachou o paciente que deu entrada para uma cirurgia. Quase sussurrando, Julieta com a boca no ouvido da amiga...
-          Verinha, arruma um frasquinho daquele, vai!
-          Que frasquinho, Julieta? Ó , tô com pressa!
-          Éter amiga, éter!
-          E a terapia? Quantas horas?
-          Sete e meia. Verinha, não vai dar pra passar o domingão sozinha.
-          Nem pensar! Quem vai assinar a saída?
-          Ah, Verinha, eu não estou falando com a chefe do laboratório? Um, pelo menos um!
-          Esquece Julieta, estou indo.
-          Vera!!!
Pisando duro, jaleco ao vento, Vera foi sumindo pelo corredor, ajeitando o crachá e cumprimentando alguns colegas.
Crás...suspendeu a persiana. Coitada da Julieta! O vício afunda as pessoas, como o Rodrigo me afundou....Tanto tempo!
-          O lote quarenta e três já chegou?
Os dedos dançavam pelos cachos louros enquanto os olhos fixavam o telefone. Será que devo ligar? Será que ainda dá tempo? Tempo. Dez anos. Talvez o Pedro nem tenha esperado. Mas se eu esperei!
-          Dona Vera, a senhora não vai almoçar? Quer que peça uma marmitex ou a senhora vai ao refeitório?
-          Vou ao refeitório Sofia, obrigada.
Abriu a porta. Sorriu. Agora caminhava a passos lentos, sorvida em vagos pensamentos.
No refeitório havia poucas pessoas. Lugares sobravam. Avistou Julieta e sentou-se ao seu lado.
-          Consegui Julieta.
-          Que alívio!
-          Foi difícil, pensei que...
-          Difícil? Me engana....
-          Você não faz idéia...
-          Ah! Pra cima de mim? Sabia que não acabaria sozinha! Enfim, um domingo acompanhada!
-          Então, você estava interessada nele?
-          Claro! Eu sempre fui apaixonada, desde a adolescência...
-          E eu achava que...
-          Amiga, você me sal-vouuuu. Adeus solidão dominical!
-          É, domingo é a cara dele.
-          Posso até aspirar seu perfume, hummm....
-          Julieta, não acredito no que ouço!
-          Ah, Verinha, você sabia, não se faça de tola.
-          Nem respeita o meu sofrimento!
-          Vai passar! Semana que vem vida nova! E então, cadê ele?
-          O Rodrigo?
-          Não, o éter!!!

Tatiana Santos

Setembro/2005.

PERDÃO

Noite. Vento. Tempestade.
Manoela dormitava no sofá, mãos pendidas, pés suspensos. Num sobressalto, despertou.
Pela soleira da porta, avançava um mar, com tal velocidade que logo o quarto tingira-se de escarlate. Cheiro de carne.
Manoela, ilhada, dialogava com o retrato da mãe repousado na cristaleira, luzindo um sorriso de Da Vinci. Não, não tive culpa. Colhes o fruto da semente plantada. Amei e ainda amo.
Explodiu em choro. Lágrimas brancas, leite derramado. Lágrimas. Láaaaaaagrimas. E o assoalho cor de rosa emergia sob os pés, o corpo pálido.
Manoela caminhava em círculo enquanto segurava o retrato da mãe que lhe cravava um olhar de Van Gogh, sem sorrir. Manoela sorriu. Beijou as faces da mãe, segurou-lhe a mão delicadamente. Conduziu-a até o quarto. Desfez a cama. Acomodou-se no leito. Cobriu-se. Amei e ainda amo. Canta pra mim?
Na penumbra do quarto, embalada pelo fio de luz que avançava lentamente pela soleira da porta, Manoela adormeceu.
(© Christian Martin Weiss)




Tatiana Santos

8 de outubro de 2005.


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