*Em memória à querida amiga Maisa Franzini
Poderia ter sido uma tarde como tantas quaisquer. Mas quisera marcar sua passagem com todo esplendor que lhe cabia reclamar.
Poderia ser mais uma quarta-feira ordinária, em que o relógio trabalharia até às 21h30, sem poesia alguma.
Poderia ser mais uma sucessão de horas trabalhadas, computadas na folha de pagamento ao final do mês...
Tudo de repente, fruto de nossas escolhas, pode rumar para alamedas em que repousar o olhar é necessário para saborear a paisagem.
Foi então que aquele dia definitivamente se fez existir, traçando no espaço linhas que me definiriam como formadora.
E eu desejei que cada segundo correspondessem a uma hora.
Ela tomou o livro nas mãos e, delicadamente, ordenou que eu me sentasse, ouvisse. Sorvi cada palavra hesitante e desejosa:
"Teresa,
não. As outras não sei, mas ela, com certeza, não. Nunca reclama. Parece um
doce que não desanda. Sentada na varanda da sua casinha modesta, mas limpinha,
casinha branca de janelas azuis, tão de brinquedo que parece uma pintura. Florezinhas
plantadas em latas de óleo vazias, um gato malhado que dorme no primeiro
degrau. Borboletas voando que estalam as asas, feito quem diz: “Ai, que bom
viver! Ai, que delícia”. Ali não é um lugar, é uma lembrança de infância."
Sua voz suave, porém firme, cadenciava os verbetes, numa dança mansa e solitária...
"Será
por isso que os filhos nunca aparecem? Nem para as festas? As comadres falam
“que absurdo!” e outras exclamações cheias de vogais. Teresa, não. Nunca
reclama. Ao invés, faz mais doces, mais e mais. E tão difícil que é, veja só:
num fogão de lenha! Tem que catar graveto, que ela não tem dinheiro para
encomendar lenha já cortada, como a vizinha Salete, aposentada do Correio. Que
quê tem? Graveto dá no chão, graveto dá de graça. É só pegar.
Teresa
pega as coisas do ar. Com seus olhinhos de jabuticaba, só faz sonhar. Por isso
que a vida não dói. Fazendo beiradas de paninhos de copa, vai cabeceando,
cabeceando até cochilar. Entra no sonho, toma um sorvete com o primeiro
namorado, brinca de roda com as amigas de longas tranças, banho de rio, rouba
goiaba e faz doce de tacho... Acorda com o cheiro do doce de verdade. Quase
passou da hora de tirar do fogo!"
De vez em quando, erguia os olhos para superar a linha horizontal dos óculos e me fitava com um azul severo, ao mesmo tempo aconchegante...
"Teresa
gostava muito de filme de bangue-bangue. Perdia tempo escrevendo cartas
compridas para uma sua prima do interior mais interior que o dela. E tendo já
uma queda para o doce, ia matando menos índios, dando menos tiros, amansando os
gritos, aumentando os romances e suspiros, terminando por fazer do tal filme,
um melado. Mas agradava. A prima sempre respondia agradecida, dizendo que não
perderia de jeito nenhum o tal filme quando passasse em sua cidade. Que nunca
ia ser: no interior do interior ninguém nem sabia o que era filme, que dirá
cinema.
Isso
quando era menina-moça. Depois, o marido largou dela e teve de pelejar para
criar os sete filhos. Só. Com doce. O que ficava de menino com o nariz espetado
na janela, que nem pardal querendo roubar pão da mesa de gente, nem te conto.
Um mundo! Esqueceu dos filmes. E o doce? Levado em potes para as casas com mais
abastança. Nem por isso acabava de brotar do seu coração, mais doce, mais e mais.
Quem não tem vocação para amarga, venha a onda que for — não arrasta. Nem
salga."
Dificilmente parava para recuperar o fôlego. Amava tudo aquilo. Seus poros denunciavam isso. Era possível sentir o calor da paixão pela leitura. Humildemente me ofertou um banquete. Um banquete em plena tarde de quarta-feira.
"Nesse
meio tempo, teve de botar as cartas, as letras, os filmes, histórias de lado.
Para depois. Mas depois sempre vem. Os sete filhos criados foram cada um para
um lado. Nenhum puxou o jeito doce, todos traziam o selo do pai: sério,
preocupado com essa coisa de fazer dinheiro. Os filhos, iguais, foram buscar o
ouro no pote do final do arco-íris. Teresa queria era o pote. E o arco-íris. O
ouro, se tivesse, botava de enfeite num bolo.
Um
dia, procurando cortes de fazenda para fazer um vestido novo de Natal, deu com
as cartas da prima. Que saudade de escrever! A prima, já morta, escrever para
quem? Os filhos trabalhavam tanto, os netos e bisnetos nunca iriam responder...
—
Pra mim, ué. Então, eu não sou alguém?"
Sorriu. Era puro prazer. Eu, hipnotizada.
"A
mão, treinada de doce, buscava um gosto de começar. Com canela ou sem? Pitada
de baunilha, sim ou não? E foi soltando a imaginação, brotando o caldo em calda. Uma vida toda
para contar, bem temperada. Doce que nem ela. Feito compotas guardadas em
porões secretos, coisas simplezinhas que, envelhecidas, se tornam finas
iguarias que adoçam a mesa dos reis. Escreveu, escreveu, escreveu. Depois
amarrou o monte de cadernos de espiral com uma tira de chita florida. E deixou para
lá."
As pausas ocorriam para que seus dedos longos pudessem transpor as páginas caudalosas de poesia.
"Até
que um dia... (sempre tem um dia que as coisas mudam, sei lá por quê). Um dia,
os filhos disseram que vinham para o Natal. Com a família completa. Vai ver
assistiram a um desses filmes xaroposos na televisão, em que morre a mãe
velhinha, sofrendo da horrível dor da solidão e do abandono. É verdade que é
triste isso de passar borracha em gente, mas Teresa... Teresa, não. Nunca
reclama. Achou boa a ideia. E foi fazer doce.
Trabalhou
que foi uma enormidade. Mas quando se tem noventa e seis anos já não se é mais
uma menina. Vá convencer Teresa disso! Arrumou a casa, preparou tudo, os
meninos chegavam daí a pouco. Terminou, guardou o avental e foi se sentar na
varanda, na hora da Ave-Maria. Que pôr-de-sol bonito! Parecia um caldo de
goiabada esparramado num chão de azulejo azul. Foi cabeceando, cabeceando até
cochilar.
Nem
o barulho das gentes chegando acordou Teresa. Nem os beijos dos bebês, cheios
de lágrimas do medo de ver um rosto tão marcado de rugas. Nem os presentes de
todo tamanho. Nem chamando pelo nome, que fazia tempo ela não ouvia de boca
outra que não a própria. Nem balançando de leve a cadeirinha. Nem sacudindo,
sacudindo. Teresa entrou no sonho e era um sonho tão doce, doce, mais e mais.
Não deu vontade de sair. Parecia um sonho de verdade, não como aqueles de
padaria. Dos feitos em casa."
Fitou-me como que querendo comunicar o clímax, um porvir surpreendente, inesperado. Nada de clichês.
"Depois
do enterro, a família voltou para casa com pressa de ir embora. Não cabiam mais
ali. Distribuíram os muitos doces entre si, arrumando as coisas igual quem quer
fugir. Quase iam deixando o principal para trás. Porém, um menino se soltou do
colo da mãe e, andando por aí, deu com uma ponta de chita florida embaixo da
cama. Foram abrindo os cadernos, um por um, lendo devagar, sentando no chão
para apreciar. Aquilo é que era doce!
Não
sei... É por essas e outras que eu acho que a vida devia começar pela
sobremesa. O salgado vinha depois. Porque, às vezes, quando o doce chega, não
tem mais espaço..."
Quando dei por mim, uma lágrima visitava minha face corada de emoção. Por alguns instantes, cedemos lugar ao silêncio. Ficamos um tempo assim, trocando olhares de cumplicidade, Aprendiz assimilando os passos do mestre.
Sim, "às vezes, quando o doce chega, não tem mais espaço". Não fui a mesma daquela cerimônia e este momento jamais se repetirá. Tive muita sorte de saborear o doce naquela tarde e, sem dúvida, sinto hoje o gosto salgado quando choro de saudade, sabendo que não mais experimentarei sobremesa tão nobre.
O texto citado se chama Doce de Teresa, de Flavia Savary. Foi extraído do livro "25 sinos de acordar natal".
Palavras perfeitas!!!!!
ResponderExcluirAmo tanto a Maisa uma historia que durou 30 anos veio de vidas passadas e vai para outras futuras, mas um dia estarei ao lado dela e hoje peço a Deus que nao nos separe mais nao suportaria outra separação que juntos resgatemos nossas dividas e cumpramos nossa missao Te amo Maisa quando vc tinha 18 anos quando tinha 47 anos e quando lhe disse que te amo mesmo no alge de sua doença vc me respondeu magina to feia e eu lhe disse o amor que tenho e de alma mesmo no ultimo minuto continuei te amando to sem rumo so espero o dia de estar com voce novamente bjos minha linda mulher antonio
ResponderExcluirFico feliz que tenha usado este espaço para comunicar este amor tão belo e forte, Antonio!
ExcluirO céu está sorrindo, tenha certeza, e o sol está escondido, pois está ocupado em aquecer esta pessoa tão especial, tão forte quanto o sol. Tão forte que teve de brilhar em outro espaço. Um abraço carinhoso e, se possível, consolador.
Fico feliz que tenha usado este espaço para comunicar este amor tão belo e forte, Antonio!
ResponderExcluirO céu está sorrindo, tenha certeza, e o sol está escondido, pois está ocupado em aquecer esta pessoa tão especial, tão forte quanto o sol. Tão forte que teve de brilhar em outro espaço. Um abraço carinhoso e, se possível, consolador.